segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

No céu ficam os astros apenas — Almada Negreiros

José de Almada Negreiros


Cada um de nós não pode deixar de ser o próprio, e ainda que para isso lhe seja indispensável a maior das forças de vontade. Efetivamente, o que os astros mandam não é para ficar no céu. No céu ficam os astros apenas. Nós somos exatamente o que eles mandam. E, verdade verdadinha, antes obedecer aos astros do que a outros.

A nossa obediência aos astros é a um tempo involuntária e heroica. Involuntária, porque a vontade é a deles, e heroica, porque não há de ser vencida pela dos humanos. Há em cada pessoa um espírito de vitória e é o mais legítimo da sua vida íntima. Nenhuma alma em vida deixou de ser instada por este espírito de vitória. Ele é a mais bela expressão da cara humana, e a sua ausência a pior. O espírito de vitória é... o espírito de vitória não é..., e estes pensamentos gaguejavam na cabeça do Antunes como se ele fosse também gago da fala. Tinha-se-lhe ido de repente a ideia tão clara, e as palavras não tiveram tempo de a agarrar.

Quando se quer outra vez uma ideia que nos fugiu, deitamos mão de qualquer imagem que se nos apresente, a ver se ela se liga com a que tínhamos antes, assim também o Antunes reparava que nunca ninguém o tinha admirado. Foi tão sensacional para ele esta descoberta que se passou inteiro para o seu novo pensamento. Tirando os pais, naturalmente, só a Maria ficava diante dele como diante de um gênio. E então o Antunes ligou logo com a ideia perdida : o espírito de vitória tem um visor de referência imediata na admiração que inspiramos aos outros. Não há melhor compensação para a nossa vida do que a admiração dos outros pelo que merecemos, mas também não há pior momento humano do que aquele em que nos admiram sem acertar com o exato do nosso valor. A pessoa verdadeira prefere inimigos autênticos a admiradores sem pontaria. Pelo justo da admiração ou repulsa dos outros podemos verificar se vamos bem com os astros, por conseguinte se não deturpamos o sentido do espírito de vitória.

A comunicação entre humanos faz-se pela admiração. Não são as ideias o que a humanidade admira senão o próprio dos sentimentos. Ótimos ou péssimos, é relativo, e pouco importa para admirar, basta que se ajustem perfeitamente àquele que com eles se move. Nos fatos da nossa vida mandam os astros, nos nossos sentimentos mandamos nós e todos os que estiveram no nosso sangue, nas nossas ideias mandam os astros e os nossos sentimentos. Os fatos decidem, o sentimento revelam-no, a ideia são resultados de fatos e de sentimentos. Os fatos e os sentimentos não se podem sintetizar, como se faz com as ideias, mas admiráveis só os sentimentos.

O Antunes recordava a cara linda de Maria diante dele e ainda via que ela gostava dele a valer, que ela dava-se-lhe como se ele lhe correspondesse, que ele lhe correspondia de fato, mas apenas por causa dela, por causa daquela sua maneira de se dar total, leal, fatal, por ser impossível dissuadi-la disso, por ser assim precisamente que os astros mandavam a ambos. Não era por engano que ela o admirava com aquela paixão. Ele, pelo contrário, é que por engano esteve quase a receber aquela dádiva que sem dúvida alguma era a ele que se destinava. E se não fossem os astros aquilo tudo ia a caminho de um contrato legal, destes de que gosta a sociedade. Esteve quase a prevalecer o legal, isto é, conforme a lei para todos, sobre o leal, ou seja, conforme a lei para cada um.


ALMADA-NEGREIROS, José de. Nome de Guerra, 2º ed., Lisboa, Ática, 1956, pp. 232-234.).

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

O Diário de Eva (fragmentos) — Mark Twain

Diário de Eva


DOMINGO DA SEMANA SEGUINTE

Durante toda a semana eu fiquei ao redor dele e tentei estabelecer relações. Tive que conversar sozinha, porque ele se sentiu intimidado, mas não me importei com isso. Ele parecia feliz de me ter por perto, e eu usei o sociável "nós” por um bom tempo, porque ele parecia ficar lisonjeado ao ser incluído.

QUARTA-FEIRA

Estamos nos dando muito bem, de fato, agora, e nos conhecendo cada vez melhor. Ele já não tenta me evitar, o que é um bom sinal, e demonstra que gosta de que eu esteja por perto. Isto me agrada, e eu estudo como ser útil para ele de todas as maneiras que puder, para assim aumentar a sua atenção. Durante os últimos dois dias eu tirei de seus ombros todo o trabalho de dar nome às coisas, e foi um grande alívio para ele, pois ele não tem talento para tanto e está evidentemente muito agradecido. Ele não consegue pensar num único nome racional para salvar sua reputação, mas não o deixo perceber que estou consciente deste seu defeito. Sempre que uma nova criatura aparece, eu lhe dou um nome antes que ele tenha tempo de se expor através de um silêncio constrangedor. Desta forma, evito que ele tenha muitos momentos de embaraço. Não tenho este tipo de defeito. No minuto em que deito os olhos num animal, sei o que é. Não preciso refletir nem por um momento; o nome certo surge instantaneamente, como se fosse uma inspiração, como de fato deve ser, sem dúvida, pois tenho certeza de que o nome não estava comigo nem meio minuto antes. Pareço saber, somente pela forma da criatura e pelo seu jeito de agir, que animal é.

Quando o dodô apareceu, ele pensou que se tratava de um gato selvagem — vi em seus olhos. Mas eu o salvei. E tive o cuidado de não o fazer de uma forma que pudesse ferir seu orgulho. Simplesmente falei de modo bastante natural, com alegre surpresa, e nem de longe deixei transparecer que estava lhe dando uma informação, e disse: “Ora essa!, se isto não é um dodô!”, e expliquei-lhe, sem parecer que estava explicando, como sabia que era um dodô. E, embora eu tenha reparado que talvez ele suspeitasse um pouco de que eu já conhecia aquela criatura, ficou bastante evidente que ele me admirava. Foi muito agradável, e pensei sobre isso mais de uma vez com satisfação antes de dormir. Como uma coisa tão pequena pode nos deixar felizes quando sentimos que a merecemos!

O Diário de Adão (fragmentos) — Mark Twain


FRAGMENTOS DO DIÁRIO DE ADÃO


QUARTA-FEIRA

Construí um abrigo contra a chuva, mas não pude desfrutá-lo em paz. A nova criatura intrometeu-se nele. Quando tentei expulsá-la, ela verteu água pelos orifícios pelos quais olha, e enxugou-a com as costas de suas patas, produzindo um ruído semelhante ao que vários animais fazem quando estão aflitos. Gostaria que não falasse; está sempre falando. Isso parece uma implicância gratuita com a pobre criatura, um insulto; mas não é o que quero dizer. Eu nunca havia escutado uma voz humana antes, e qualquer som novo e estranho que irrompe sobre o murmurar solene destas vastidões sonhadoras ofende meus ouvidos e soa como uma nota falsa. E este novo som está tão perto; bem ao lado do meu ombro, em cima das minhas orelhas, primeiro de um lado, depois do outro, e estou acostumado apenas a sons que estão mais ou menos longe de mim.



SEXTA-FEIRA

O processo de nomear continua intenso e sem qualquer controle, e não há nada que eu possa fazer. Eu tinha posto um ótimo nome no território, um nome musical e belo — JARDIM DO ÉDEN. Comigo mesmo, continuo a chamá-lo assim, mas já não posso fazê-lo abertamente. A nova criatura diz que ele é todo bosques e rochas e paisagens, e portanto não se parece de forma alguma com um jardim. Ela diz que se parece com um parque, e que não se parece com mais nada a não ser um parque. Portanto, sem me consultar, ele foi renomeado — PARQUE DAS CATARATAS DO NIÁGARA. Isto me parece bastante arbitrário. E já tem um cartaz: 
NÃO PISE NA GRAMA. Minha vida já não é tão feliz como antes.



SÁBADO

A nova criatura come frutas demais. Vamos ter uma escassez, ao que tudo indica. O nós de novo — a palavra daquela coisa, e minha também, agora, depois de tanto ouvi-la. Muita neblina esta manhã. Eu não saio no meio da neblina. A nova criatura sai. Ela sai com qualquer tipo de clima e pisa aqui dentro com seus pés enlameados. E fala. Aqui costumava ser tão quieto e prazeroso.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Estou cansado de confiar em mim próprio — Fernando Pessoa

Fernando Pessoa

[Estou cansado de confiar em mim próprio, de me lamentar]

                                         25-7-1907

      Estou cansado de confiar em mim próprio, de me lamentar, de derramar lágrimas de piedade de mim próprio. Acabo de ter uma espécie de cena com a Tia Rita por causa de E. Coelho. No final, senti novamente um daqueles sintomas que se tornam cada vez mais claros e mais horríveis em mim: uma vertigem moral. Na vertigem física há um rodopiar do mundo exterior à nossa volta; na vertigem moral um rodopiar do mundo interior. Pareceu-me perder, por momentos, o sentido das verdadeiras relações das coisas, perder a compreensão, cair num abismo de dormência mental. É uma sensação pavorosa, que nos acomete de um medo desmesurado. Estas sensações estão a tornar-se comuns, parecem abrir-me o caminho para uma nova vida mental, que será, evidentemente, a loucura. 
      Na minha família não há compreensão do meu estado mental — não, nenhuma. Riem-se de mim, zombam de mim, não me acreditam; dizem que desejo ser alguém extraordinário. Nada fazem para analisar o desejo de ser extraordinário. Não podem compreender que entre ser-se e desejar-se ser extraordinário apenas há a diferença de se acrescentar consciência a esse desejo. É o mesmo que me acontecia brincando com soldadinhos de chumbo  Estou cansado de confiar em mim próprio, de me lamentar aos sete e aos catorze anos de idade; no primeiro caso eles eram coisas, no segundo, coisas e brinquedos ao mesmo tempo; todavia, o impulso para brincar com eles persistia, e esse era o estado psíquico real, fundamental. 
      Não tenho ninguém em quem confiar. A minha família não entende nada. Aos meus amigos não posso incomodar com estas coisas. Não tenho amigos verdadeiramente íntimos, e mesmo que houvesse um amigo íntimo, como o mundo o entende, ainda assim não seria íntimo no sentido em que eu entendo a intimidade. Sou tímido e não gosto de dar a conhecer as minhas angústias. Um amigo íntimo é um dos meus ideais, um dos meus sonhos, mas um amigo íntimo é algo que nunca terei. Nenhum temperamento se adapta ao meu; não há um carácter neste mundo que dê o mais leve indício de se aproximar do que eu sonho num amigo íntimo. Basta, não falemos mais nisto. 
      Amante ou namorada não tenho; é outro dos meus ideais e um ideal pleno, até à sua alma, de uma total não-existência. Não pode ser como eu o sonho. Ai de mim! Pobre Alastor! Shelley, como eu te compreendo! Poderei confiar na Mãe? Quisera tê-la comigo. Também não me posso confiar a ela, mas a sua presença mitigaria grande parte da minha dor. Sinto-me tão sozinho como um navio naufragado no mar. E sou, na verdade, um náufrago. Então confio em mim mesmo. Em mim mesmo? Que confiança existe nestas linhas? Nenhuma. Quando volto a lê-las, dói-me o espírito ao perceber quão pretensiosas, quão próprias de um diário literário elas são! Em algumas cheguei até a fazer estilo. Porém, nem por isso sofro menos. Um homem tanto pode sofrer vestido de seda como coberto com um saco ou um cobertor roto.    
      Basta.

In: Obra Essencial de Fernando Pessoa.Prosa Íntima e de Autoconhecimento. Edição Richard Zenith, Assírio & Alvim, Abril 2007